Entranhos abjetos
Sérgio Lima Silva
“Não imaginamos tudo o que podemos fazer com os olhos fechados.”
Thomas Bernhard
poesia é quem nem passarin d água, quem muito se chega mode ouvir, finda se muiando...
ALMA
quem sou eu sem corpo
a me passar por muro?
ABATE
nem todo coágulo é sangue
nem todo sangue é vivo
nem todo vivo é coágulo
um círculo de plástico
desenrola em jardim
ALEGRIA
duas orelhas
num copo
regadas
noite trancada
por dentro
do vento
AMAR
se eu me ouvisse tocar
esqueleto em cabides
ressonaria
se eu me visse
aço de soprar
por dia
AMOR
osso
bem longe
ANSIEDADE
unha de montanha
neve marcada
fogo feriado
o olhar de nuvem
fala pouco
se vê
ABSTEMIA
não vou morrer vazio
a vida aberta
é pra beber
ÁGUA
olho
que o som
não fez
vê
a pétala que o chão
não faz
ALIENAÇÃO
a calma vai embora
aos pulos
um buraco aqui
outro além
e se eu provar
meu sorriso entranhado
poderei sair?
APOSENTADORIA
pela janela
passava a tarde
jogando damas
pela janela
AULA
tossiu uma névoa
interrompeu o discurso
com outro
a névoa escorria da sede
e pingava na fala
BEIJO
merda de mamilo
leite exasperado
cheiro de morder
siso de falar
inesperado plasma
vida inflamada
tremulando ao cu
BELEZA
nem todo
nascimento sabe
borrar a paisagem
alguns são a própria
BOEMIA
a natureza homeopatia
cajus jabuticabas
xícaras não mordem
no cinzeiro
sempre é inverno
BOI
azeitona de faróis
capim de mamilo
inócuo
tonel de armistício
enferrujado
CARINHO
estrela não merece precipício
escuro é um caminho de apalpar
tato vem com os nós sem cordões
COMIDA
pó de gesso auxilia a mastigação
com mais dois goles de arame
farpas de mel
bom-bocado de medos
a laringe aberta em flor
CONSUMO
eu me coloco
de acordo com
a procura
eu me coloco
à altura
do golpe
DEUS
um cego
não se apóia
na luz
pra se erguer
quem cria a dor
odeia bálsamo
DIA
com palavrões na esquina
assim meditava o sol
até supor
dedicado e inflado
cordão pendurado
ao redor do umbigo
afasta os lábios do dia
a golpes de face
dedos perfeitos
que chovia
EMANCIPAÇÃO
voltei pra mim
a porta trancada
a rua lapidada
presa na vitrine
passos formam um lago
braço angustiado
do lado de fora
ENCONTRO
ela me esperou
atrás da aorta
deixou o sangue
trancado no armário
a chave pendurada
no dorso do orvalho
trancou as portas
em cada dente
dez centímetros cúbicos
de gás sem poro
FÉ
guardava
o novelo de pelos
sob a montanha
caminhar supõe
correntes
esperança de um rio
na mão
cravado
FELICIDADE
tantos bolsos
nada a carregar
mãos vazias
cercam a razão
emaranhado de passos
nas costas do céu
FILOSOFIA
pele de papel
é molhada
não serve pra escrever
o que deve
ser lido
é porejado
FLORA
planta não tem planos
nunca se turva
mesmo morrendo
calar o alicerce
não impede o pesadelo
FOME
poucos silêncios protestam
alguns nem calam
pele de barriga
quer chover
pegadas de elefante
flutuam sobre o couro
dissecado
FRUTO
chamaram-me de três
e eu nem estava completo
mesmo assim voltei o tronco
para o jardim inicial
todo fruto tem seu tempo
todo o tempo intemperança
GRANDEZA
cabe aqui
nada medir
essa luz embrulhada
na pálpebra
toma tudo
um sono
entorna o músculo
do sonho
GULA
uma fonte
anoitecendo a falha
parece que de morte
tudo reticente
mastigar a chave
pressupõe
fechadura de ferro
HOMEM
engrenagem sem ferrugem
funciona aberto
óleo derramado
sobre o sonho
HUMANIDADE
lixo paralelo
ao sul
do meridiano de Greenwich
reciclo palavras
cada qual
no sem sentido
IMPORTÂNCIA
à boca
importa a bala
à bela
importa o berro
abala o pó
aterro
apelo seco
naco
INFINITO
termina em mim
a ponta do novelo
sem fim
JUVENTUDE
as letras mais bonitas
não usam
vestido de chita
antes do vento
se por
antes do verde
ficar
o medo
vai se afogar
no cabelo
LIMITE
quando o assunto é verde
limito com urina
meu domínio amadurece
antes de surgir a casca
LUZ
trem perfura
sondas
passageiro sentido
morte sul
trilho soltando as saias
no coração do vento
MÃE
um ouvido colado no olho
um cuidado exumado muito tarde
um caminho onde o pé só é sonho
um lugar pra cegar
um vendaval sem as folhas
um poema sem mim
MARÉ
mata onde navega o rancor
escarpa riscada de dor
nada onde matei a paz
nado tanto faz
MISSA
Reticências após a lamúria
Feridas mordendo a areia
Onde o ostensório
Submerge silente
MORTE
janela não foi feita
pra mentir
MULHER
poucos entendem uma árvore
basta ser a sombra
durante a noite
só mover a luz
para dentro
NOITE
entre os corais
a sombra jaz
pouco do teto se aprende
mesmo os de asas
precisam de estrelas
pra comer
NOVIDADE
de repente
surgem novas palavras
nomeando coisas antigas
onde era a cabeça
foz descascada
ÓDIO
sangue
não
sabe
voltar
ORAÇÃO
pelo sim
pelo não
por mim
pela mão
pelo fim
pelo chão
por ti
pelo pão
a mente
há de
mentir
OTIMISMO
somente quando
tiram a pele
o corpo permanece
em carne viva
PÁGINA
ninguém beijou
suas costas
falesianas
onde bate a cultura
termina o buraco
PAI
nada que eu disser
ouvirão frutos
árvores planejam quintais
eu perco os ritos
cantar exila o que fiz
zerar a porta
melhora a madrugada
reacende o solo
regar a enxada
PERDÃO
mordi a pedra
sorriso de um chão
machuquei meu amor
veia de amor
não tem sangue
inútil perdão
embrulhado numa gaze
POESIA
singrar o silêncio
a bordo da palavra
derramar o silêncio
ao redor da palavra
no silêncio
abortar a palavra
em silêncio
deglutir a palavra
e silêncio
POSSE
exagerei no princípio
sempre tenho um agora
ter requer fechaduras
mãos fugidias
cadáver imortal
intestino começando do fim
PUDOR
dedo nu permite gozo
clitóris cru carinho introrso
QUEIXA
olho nasce sem água
mina quando doce montanha
aclive de madeira pensa
se faltar a cor aldeia
não quero ministrar cebola
tampouco ampola de sereia
pouco sei da escova moça
mas trarei no dorso aveia
QUERER
lago quebra a cara
no espelho d’água
palafitas sem lastro
flutuam sob o muro
derramar pessoas
sobre os motivos
não vai abrir as celas
quem quiser sentir
procure a veia
RAZÃO
boca sem motor
jardim de mercúrio
automóvel de malas
o círculo sente parar
mãos que o corpo perdeu
REFLEXÃO
quem quer saber do vento
não se olha
espelhos não esquecem contratempos
aço acelera o escarro
por pouco não me basto
olho o vento sem saber
ROTINA
lâmina de acordar
represa tragédias
fútil é o vento que não vê
a morte antecipada
dos ossos
SAUDADE
preencho com carne
o formulário do vazio
pé sem saber
é corpo sem pensar
porta pendurada no teto
será a saída?
SEGREDO
vara do sussurro
tamanho do mundo
atravessando a garganta
com a luz apagada
SER
não se costura
a roupa da dúvida
SILÊNCIO
nem tudo que seduz
é couro
nem tudo que reduz
é soro
nem toda palavra
é ouro
às vezes o silêncio
é o melhor tesouro
SOLIDÃO
o azul do céu
divide o mar do intestino
em duas partes
na primeira
não se fala da morte no escuro
na segunda
a vida tem medo
de se olhar no espelho
nem sempre o céu
suporta o azul
na maioria das vezes
envelhece
TEMPO
o tempo passa
quando não está
envelhece
quando não é
renasce
quando não estamos
TINO
todo contrário tem suas cabeças
já tive as minhas
agora busco de costas
razões inventadas
TRAIÇÃO
auréola cercada de cuspe
por todos os fatos
anágua pendurada
no vitral
meias três quartos
pernas de dentro
beijar não assiste
UBIQUIDADE
nem todo olho se desloca
alguns dão frutos
espanta o orifício com espuma
desaba o pelo do asfalto
UNIVERSO
medo de pisar
além do mundo
prega de saia
impregnada
de motivos
comer o mundo
ainda quente
pela beira
língua imaculada
sem motivo
VARANDA
a paciência e o seu furo
mãos dadas
cada janela uma rua diferente
lembrar nem sempre olha
lembranças aquecidas
exala cheiros sem cor
VIAGEM
blocos de ventos
blocos de rochas
blocos de matos
melhor verificar
o alicerce
VIDA
pra fora?
pra dentro?
nunca deixe o medo
atravessar a porta
sem caminhos
para onde vão os sapatos?
XAXIM
volto para mim
deixo a porta aberta
ossos pendurados sem pescoço
esperam a chuva passar
rumina o sol
retorcendo os galhos
do dia
XENOFOBIA
ninguém permanece impune
ao ler a morte
no original
flores mortas
velas vivas
tradução simultânea
com a lágrima
ZANGA
mostre o grito
por dentro
esqueça a tranca
mostre que no ar
só ida
ZOADA
o que embriaga o silêncio
também já bebi
ralo é porto
de quem se excetua
longa viagem de barco
singrando a porfia