LIVRO

ENTRANHOS ABJETOS É UM LIVRO QUE PARTICIPOU DO CONCURSO LITERÁRIO MINAS GERAIS 2010 E NÃO FOI PREMIADO. PREMIO OS LEITORES COM A PUBLICAÇÃO NESTE BLOG.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

ENTRANHOS ABJETOS

Entranhos abjetos


Sérgio Lima Silva









“Não imaginamos tudo o que podemos fazer com os olhos fechados.”

Thomas Bernhard




poesia é quem nem passarin d água, quem muito se chega mode ouvir, finda se muiando...







ALMA




quem sou eu sem corpo
a me passar por muro?










ABATE




nem todo coágulo é sangue
nem todo sangue é vivo
nem todo vivo é coágulo

um círculo de plástico
desenrola em jardim











ALEGRIA




duas orelhas
num copo
regadas
noite trancada
por dentro
do vento











AMAR




se eu me ouvisse tocar
esqueleto em cabides
ressonaria

se eu me visse
aço de soprar
por dia











AMOR




osso
bem longe











ANSIEDADE




unha de montanha
neve marcada
fogo feriado

o olhar de nuvem
fala pouco
se vê











ABSTEMIA




não vou morrer vazio
a vida aberta
é pra beber











ÁGUA




olho
que o som
não fez


a pétala que o chão
não faz











ALIENAÇÃO




a calma vai embora
aos pulos
um buraco aqui
outro além
e se eu provar
meu sorriso entranhado
poderei sair?











APOSENTADORIA




pela janela
passava a tarde
jogando damas
pela janela











AULA




tossiu uma névoa
interrompeu o discurso
com outro
a névoa escorria da sede
e pingava na fala











BEIJO




merda de mamilo
leite exasperado
cheiro de morder
siso de falar
inesperado plasma
vida inflamada
tremulando ao cu









BELEZA




nem todo
nascimento sabe
borrar a paisagem
alguns são a própria










BOEMIA




a natureza homeopatia
cajus jabuticabas
xícaras não mordem
no cinzeiro
sempre é inverno









BOI




azeitona de faróis
capim de mamilo
inócuo
tonel de armistício
enferrujado









CARINHO




estrela não merece precipício
escuro é um caminho de apalpar
tato vem com os nós sem cordões










COMIDA




pó de gesso auxilia a mastigação
com mais dois goles de arame
farpas de mel
bom-bocado de medos
a laringe aberta em flor









CONSUMO




eu me coloco
de acordo com
a procura
eu me coloco
à altura
do golpe











DEUS




um cego
não se apóia
na luz
pra se erguer

quem cria a dor
odeia bálsamo










DIA




com palavrões na esquina
assim meditava o sol
até supor
dedicado e inflado
cordão pendurado
ao redor do umbigo
afasta os lábios do dia
a golpes de face
dedos perfeitos
que chovia











EMANCIPAÇÃO




voltei pra mim
a porta trancada

a rua lapidada
presa na vitrine

passos formam um lago
braço angustiado
do lado de fora










ENCONTRO




ela me esperou
atrás da aorta
deixou o sangue
trancado no armário
a chave pendurada
no dorso do orvalho
trancou as portas
em cada dente
dez centímetros cúbicos
de gás sem poro















guardava
o novelo de pelos
sob a montanha
caminhar supõe
correntes
esperança de um rio
na mão
cravado











FELICIDADE




tantos bolsos
nada a carregar
mãos vazias
cercam a razão
emaranhado de passos
nas costas do céu









FILOSOFIA




pele de papel
é molhada
não serve pra escrever
o que deve
ser lido
é porejado










FLORA




planta não tem planos
nunca se turva
mesmo morrendo
calar o alicerce
não impede o pesadelo









FOME




poucos silêncios protestam
alguns nem calam

pele de barriga
quer chover

pegadas de elefante
flutuam sobre o couro
dissecado









FRUTO




chamaram-me de três
e eu nem estava completo
mesmo assim voltei o tronco
para o jardim inicial
todo fruto tem seu tempo
todo o tempo intemperança











GRANDEZA




cabe aqui
nada medir
essa luz embrulhada
na pálpebra
toma tudo
um sono
entorna o músculo
do sonho









GULA




uma fonte
anoitecendo a falha
parece que de morte
tudo reticente
mastigar a chave
pressupõe
fechadura de ferro










HOMEM




engrenagem sem ferrugem
funciona aberto
óleo derramado
sobre o sonho









HUMANIDADE




lixo paralelo
ao sul
do meridiano de Greenwich

reciclo palavras
cada qual
no sem sentido









IMPORTÂNCIA




à boca
importa a bala
à bela
importa o berro
abala o pó
aterro
apelo seco
naco










INFINITO




termina em mim
a ponta do novelo
sem fim









JUVENTUDE




as letras mais bonitas
não usam
vestido de chita
antes do vento
se por
antes do verde
ficar
o medo
vai se afogar
no cabelo












LIMITE




quando o assunto é verde
limito com urina
meu domínio amadurece
antes de surgir a casca










LUZ




trem perfura
sondas
passageiro sentido
morte sul
trilho soltando as saias
no coração do vento










MÃE




um ouvido colado no olho
um cuidado exumado muito tarde
um caminho onde o pé só é sonho
um lugar pra cegar
um vendaval sem as folhas
um poema sem mim










MARÉ




mata onde navega o rancor
escarpa riscada de dor
nada onde matei a paz
nado tanto faz









MISSA




Reticências após a lamúria
Feridas mordendo a areia
Onde o ostensório
Submerge silente









MORTE




janela não foi feita
pra mentir









MULHER




poucos entendem uma árvore
basta ser a sombra
durante a noite
só mover a luz
para dentro











NOITE




entre os corais
a sombra jaz
pouco do teto se aprende
mesmo os de asas
precisam de estrelas
pra comer










NOVIDADE




de repente
surgem novas palavras
nomeando coisas antigas
onde era a cabeça
foz descascada









ÓDIO




sangue
não
sabe
voltar









ORAÇÃO




pelo sim
pelo não
por mim
pela mão
pelo fim
pelo chão
por ti
pelo pão

a mente
há de
mentir









OTIMISMO




somente quando
tiram a pele
o corpo permanece
em carne viva










PÁGINA




ninguém beijou
suas costas
falesianas
onde bate a cultura
termina o buraco









PAI




nada que eu disser
ouvirão frutos
árvores planejam quintais
eu perco os ritos
cantar exila o que fiz
zerar a porta
melhora a madrugada
reacende o solo
regar a enxada










PERDÃO




mordi a pedra
sorriso de um chão
machuquei meu amor
veia de amor
não tem sangue
inútil perdão
embrulhado numa gaze









POESIA




singrar o silêncio
a bordo da palavra
derramar o silêncio
ao redor da palavra
no silêncio
abortar a palavra
em silêncio
deglutir a palavra
e silêncio









POSSE




exagerei no princípio
sempre tenho um agora
ter requer fechaduras
mãos fugidias
cadáver imortal
intestino começando do fim










PUDOR




dedo nu permite gozo
clitóris cru carinho introrso









QUEIXA




olho nasce sem água
mina quando doce montanha
aclive de madeira pensa
se faltar a cor aldeia

não quero ministrar cebola
tampouco ampola de sereia
pouco sei da escova moça
mas trarei no dorso aveia









QUERER




lago quebra a cara
no espelho d’água

palafitas sem lastro
flutuam sob o muro

derramar pessoas
sobre os motivos
não vai abrir as celas

quem quiser sentir
procure a veia









RAZÃO




boca sem motor
jardim de mercúrio
automóvel de malas
o círculo sente parar
mãos que o corpo perdeu









REFLEXÃO




quem quer saber do vento
não se olha
espelhos não esquecem contratempos
aço acelera o escarro
por pouco não me basto
olho o vento sem saber









ROTINA




lâmina de acordar
represa tragédias
fútil é o vento que não vê
a morte antecipada
dos ossos









SAUDADE




preencho com carne
o formulário do vazio
pé sem saber
é corpo sem pensar
porta pendurada no teto
será a saída?










SEGREDO




vara do sussurro
tamanho do mundo
atravessando a garganta
com a luz apagada









SER




não se costura
a roupa da dúvida








SILÊNCIO




nem tudo que seduz
é couro

nem tudo que reduz
é soro

nem toda palavra
é ouro

às vezes o silêncio
é o melhor tesouro









SOLIDÃO




o azul do céu
divide o mar do intestino
em duas partes
na primeira
não se fala da morte no escuro
na segunda
a vida tem medo
de se olhar no espelho
nem sempre o céu
suporta o azul
na maioria das vezes
envelhece









TEMPO




o tempo passa
quando não está

envelhece
quando não é

renasce
quando não estamos









TINO




todo contrário tem suas cabeças
já tive as minhas
agora busco de costas
razões inventadas









TRAIÇÃO




auréola cercada de cuspe
por todos os fatos
anágua pendurada
no vitral
meias três quartos
pernas de dentro
beijar não assiste










UBIQUIDADE




nem todo olho se desloca
alguns dão frutos
espanta o orifício com espuma
desaba o pelo do asfalto









UNIVERSO




medo de pisar
além do mundo

prega de saia
impregnada
de motivos

comer o mundo
ainda quente
pela beira

língua imaculada
sem motivo









VARANDA




a paciência e o seu furo
mãos dadas
cada janela uma rua diferente
lembrar nem sempre olha
lembranças aquecidas
exala cheiros sem cor









VIAGEM




blocos de ventos
blocos de rochas
blocos de matos
melhor verificar
o alicerce









VIDA




pra fora?
pra dentro?

nunca deixe o medo
atravessar a porta

sem caminhos
para onde vão os sapatos?









XAXIM




volto para mim
deixo a porta aberta
ossos pendurados sem pescoço
esperam a chuva passar
rumina o sol
retorcendo os galhos
do dia








XENOFOBIA




ninguém permanece impune
ao ler a morte
no original

flores mortas
velas vivas
tradução simultânea
com a lágrima









ZANGA




mostre o grito
por dentro

esqueça a tranca

mostre que no ar
só ida









ZOADA




o que embriaga o silêncio
também já bebi

ralo é porto
de quem se excetua

longa viagem de barco
singrando a porfia